Após 13 horas golpeando o canavial da fazenda com seu facão, o negro Romário chega, sob os últimos raios de sol, ao barraco minúsculo onde vive trancafiado com outros três homens, igualmente escravizados e negros. O espaço não tem janela, água tratada e conta apenas com duas camas. Apesar disso, ele precisa comer os restos que o capataz lhe oferece e descansar: às 4h do dia seguinte, a labuta recomeça. Se resistir, será agredido com chicotadas e pauladas.
A cena poderia estar registrada no diário de algum cronista que passou pelo Brasil colonial no século XVII e visitou engenhos de açúcar no Recôncavo Baiano ou no litoral de Pernambuco. Infelizmente, não é o caso. Embora subjugados pela miséria, Romário Rosa e seus companheiros de lida eram homens livres até chegarem a uma fazenda na localidade de Angelim, em São Fidélis, no Norte Fluminense. Enganados pelo proprietário, foram escravizados por mais de dez anos. No dia 26 de abril, a polícia prendeu três pessoas: o fazendeiro, seu filho e o capataz.
Essa história pavorosa lembra uma passagem do livro “Formação do Brasil contemporâneo”, de Caio Prado Jr., publicado em 1942: “O passado, aquele passado colonial, aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir.” Nenhum país convive tanto tempo com a escravidão impunemente.
São Fidélis não é exceção. Entre 1995 e 2012, fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 44.415 pessoas submetidas a condições análogas ao regime escravista. No último relatório produzido, a maior quantidade de flagrantes ocorreu no Pará, onde foram encontrados 563 trabalhadores. O estado foi seguido por Minas Gerais, com 394, e Tocantins (321). No Rio de Janeiro, foram registrados 14 casos dos 2.750 verificados no país. Apesar dessa tragédia, a PEC do Trabalho Escravo se arrasta no Congresso Nacional há inacreditáveis 15 anos, graças ao lobby dos ruralistas. Eles resistem porque a proposta prevê a desapropriação de terras onde haja trabalho escravo.
O Rio de Janeiro esteve no topo do ranking em 2009, quando 521 pessoas foram resgatadas em cinco estabelecimentos. A maior parte delas vivia em fazendas de cana em Campos dos Goytacazes. Os números chocam, mas a situação persiste. Em 2010, o Ministério Público Federal denunciou à 1ª Vara Federal de Campos seis gestores da usina açucareira Santa Cruz pelo crime. Os trabalhadores tiveram as carteiras de trabalho retidas e não recebiam devidamente seus salários. No ano seguinte, uma operação conjunta do Ministério do Trabalho, do Ministério Público e da Polícia Rodoviária Federal flagrou 20 pessoas — entre elas cinco menores — trabalhando em condições análogas na Fazenda Lagoa Limpa.
Passamos pelos períodos colonial, imperial e republicano sem enfrentar a questão agrária. Herdamos uma estrutura excludente e concentradora de riquezas, mas não realizamos a reforma que poderia diminuir as injustiças no campo e as pressões migratórias para as cidades. A consequência não é só o trabalho escravo, mas o crescimento da violência nas áreas rurais, motivada por conflitos fundiários. Segundo o Relatório Anual Conflitos do Campo Brasil 2012, da Comissão Pastoral da Terra, houve um crescimento de 24% no número de homicídios e de 102% nas tentativas de assassinatos, em 2011 e 2012. A quantidade de famílias vítimas de crimes de pistolagem subiu de 15.456 para 19.968 (30%).
Apesar dos exemplos, a nossa herança escravocrata não se restringe ao campo. Ela impregna as instituições, o acesso a direitos fundamentais, as nossas relações cotidianas mais banais. Como escreveu Caio Prado, aquele passado colonial ainda está presente naqueles quartinhos apertados construídos nos fundos dos apartamentos; na resistência a reconhecer os direitos trabalhistas das empregadas domésticas; na proibição de uma babá entrar num clube da Zona Sul sem seu distintivo uniforme; na criminalização do funk; no êxtase provocado pelo justiçamento de um adolescente acorrentado a um poste; no assassinato de jovens negros nas favelas; na negação da humanidade da massa carcerária brasileira…