Primo enjeitado do petróleo, o gás natural está nas manchetes com o prometido “choque” de oferta que baixará preços e multiplicará investimentos. Antes tarde do que nunca. Pelas próprias petroleiras, ele é visto como a ponte para a economia de baixo carbono. Abundante no pré-sal, no mundo, o recurso experimenta uma revolução apoiada na tecnologia de liquefação, nas reservas de folhelho e no aproveitamento químico. Às portas da transição energética e diante da riqueza encontrada em águas ultraprofundas, não faltam motivos para apostar no futuro do gás na matriz energética brasileira. Contudo, é bom ter cuidado e alguma precaução, afinal, não foi desprezado por décadas à toa.
A física básica ajuda a entender o problema. Por conter muito menos energia por metro quadrado que o carvão e o petróleo, ambos de origem fóssil como o gás natural, ele sempre esteve em desvantagem. Movimentá-lo e guardá-lo é bem mais caro, a despeito de todo avanço realizado no século passado. Fora isso, os meios para tanto são especialmente dedicados e indivisíveis: sem gás, um gasoduto para nada serve, uma jazida gigantesca e distante, sem gasoduto, não vale muito. As instalações não são concebidas separadamente, estão todas conectadas umas às outras.
Para complicar, até alcançar seu uso final, o gás percorre um longo caminho numa extensa cadeia de agregação de valor, na qual, em sucessivas transformações e seguidos deslocamentos, podem ocorrer numerosas variações, alguns desvios e utilizações as mais diversas (como matéria-prima ou fonte de energia). Algumas vezes elas são concorrentes, outras, complementares. A cada elo da cadeia de valor, ocorre uma transação que corresponde a um “custo-transação”. De forma a assegurar o controle do fluxo, evitar interrupções de qualquer natureza e maiores riscos em investimentos de bilhões de dólares, a propriedade dos diferentes ativos maximiza o lucro e, portanto, viabiliza a expansão. A verticalização, as participações cruzadas e os contratos de longo prazo diminuem o custo da oferta.
O valor criado a cada etapa e a infraestrutura em rede do negócio conferem um enorme poder às empresas. Elas não vendem um produto e, sim, um serviço: a sua entrega, pronto para uso, em fluxo contínuo, na especificação e no volume desejado. Nos serviços em rede, ao contrário do convencional, o custo de fornecer mais uma unidade (custo marginal) tende a zero, enquanto o benefício de adquirir a unidade adicional tende ao infinito. Em termos práticos, o vendedor captura o comprador, não há como substituí-lo: boa questão para o pensamento econômico do século XXI.
Tudo fica mais difícil quando se considera o meio ambiente e o clima. O aproveitamento do gás exige, então, muito mais atenção. O recurso não renovável emite menos dióxido de carbono que os demais combustíveis fósseis e nenhum particulado (ou fuligem). Assim, substitui o carvão na geração elétrica, o óleo combustível como fonte de calor e pode deslocar os derivados do petróleo no transporte, além de impulsionar a nova petroquímica. Apesar do potencial, não é panaceia e, principalmente, não existe solução de pronto-uso. Aliás, acreditar que o livre-mercado vai dar conta da defesa do consumidor e da proteção ambiental, contra oligopólios articulados em intricadas cadeias produtivas, não tem respaldo nem histórico, nem teórico.
Posto isto, em agosto de 2019, àquele interessado no assunto, salta aos olhos a aposta na competição e na queda do preço. Ela não será imediata, talvez daqui a quatro anos, se tudo der certo. Ademais, a aposta ignora fundamentos teóricos e tem pouca aderência à realidade; afinal, trata-se de transformar monopólios em oligopólios; dois ambientes de competição imperfeita. Os monopólios naturais e a concorrência pura (e perfeita) são modelos simples, facilmente compreensíveis quanto à conduta e ao desempenho dos atores, o que não se verifica nos oligopólios, instáveis por natureza e, quando concentrados, imprevisíveis; assim ensina a microeconomia elementar.
A experiência europeia, continente dotado de larga infraestrutura, demonstra em quanto a práxis reflete a teoria: há 30 anos, eivada de tentativas, erros e acertos, a política de abertura teve impacto reduzido nos preços e no poder de mercado das empresas. Lá, o preço do gás é no mínimo o dobro do cobrado nos Estados Unidos ou no Canadá. No Brasil, por sua vez, a “quebra” do monopólio da Petrobrás completa 20 anos e não se consumou.
Aqui, o sobrepreço é maior e até as estatísticas são pobres: o preço médio nem ponderado é. Os valores das transações encontram-se protegidos pelo sigilo contratual e os preços não estão subordinados a regulação alguma, a não ser o botijão de GLP comprado pelas famílias brasileiras que, aliás, nem gás natural é. Seria bom também explicar isso às autoridades.
Além disso, o que acontece no Hemisfério Norte não se repetirá por aqui e, neste ponto, a geografia foi inclemente para eles. A calefação e a
eletrificação empurraram o carvão para a base do sistema energético nos EUA, nos países europeus e na China. Nestes, a transição energética passa justamente pela substituição do carvão pelo gás, o que diminui em um terço as emissões de CO2 por unidade de calor fornecida à indústria e às residências e em metade as emissões na geração de eletricidade.
No Brasil, de novo a geografia, a base é outra e a extensão territorial de Norte a Sul nos permitiu integrar bacias hidrográficas com diferentes regimes pluviométricos. A mesma diversidade hoje impulsiona o aproveitamento eólico e fotovoltaico. Como não há quase carvão para substituir e o gás será o complemento que compensará a intermitência das novas fontes, cabe pensar em outros usos, como substituir o óleo diesel nas metrópoles e o GLP nas residências, além do mais importante e nunca mencionado: o uso como matéria prima, quando seu valor até quintuplica frente ao original.
Embora essencialmente acadêmica, o que pouco ajuda hoje em dia, vale ressaltar a inquietude quanto ao conteúdo da “nova” política de gás natural, do qual pouco se sabe, mas, muito se fala. Sem planejamento metódico e regulação precisa não haverá gás para crescer, ele ficará como está, encalhado nas jazidas de onde jorra o óleo do pré-sal. É este que dá lucro.
Autor:
Luís Eduardo Duque Dutra é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris XIII, Mestre em Planejamento
Energético pela COPPE e Professor Adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Confira a publicação original:
https://www.valor.com.br/imprimir/noticia/6431631/opiniao/6431631/sem-plano-nao-havera-gas-para-crescer