Um sistema para o mapeamento genético de espécies poliploides – cujos cromossomos não se organizam aos pares, mas em vários conjuntos de distintos tamanhos, como é o caso da cana-de-açúcar – promete agilizar o trabalho dos cientistas e dos profissionais que trabalham com melhoramento genético de plantas, conhecidos como melhoristas.
Resultados do trabalho, desenvolvido na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) com apoio da Fapesp, foram publicados na revista G3: Genes, Genomes, Genetics. O sistema nomeado MAPpoly, cuja licença é livre, pode ser acessado gratuitamente na internet.
Até o momento, estavam disponíveis apenas sistemas para mapeamento de espécies diploides (2n) – aquelas que possuem duas cópias de cada cromossomo, uma vinda do pai e outra da mãe, como os humanos – ou poliploides mais simples (4n). Nos poliploides complexos (Xn, ou múltiplas cópias), as possibilidades de combinações entre cromossomos são maiores, o que torna o processo de mapeamento mais difícil.
Muitos dos cultivos que passaram por melhoramento genético são poliploides. A batata-doce, por exemplo, é um hexaploide (6n), ou seja, tem grupos de seis cópias de cromossomos. A cana-de-açúcar do gênero Saccharum, usada pelos produtores de açúcar e de etanol no Brasil e no mundo, tem um número variável, que pode ser de seis a 14 cópias, tornando-a uma das espécies mais desafiadoras para estudos genéticos.
Encontrar uma forma de analisar de maneira eficiente situações complexas, como a presente nessas culturas, foi o objetivo da pesquisa de Marcelo Mollinari, hoje pesquisador da North Carolina State University em Raleigh, Carolina do Norte, Estados Unidos. Ele desenvolveu grande parte do sistema durante seu pós-doutorado, sob supervisão de Antonio Augusto Franco Garcia, professor do Departamento de Genética da Esalq-USP, e com apoio de bolsa a Fapesp.
“Usando conhecimento e instrumental da genética estatística, o estudo resultou em um novo método que resolve, de maneira robusta, esse desafio”, disse Mollinari, que também recebeu bolsa da Fapesp para um estágio de pesquisa realizado na Purdue University, nos Estados Unidos.
O trabalho também contou com recursos do Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) aplicados no projeto “Genomic-assisted breeding of sugarcane: using molecular markers for understanding the genetic architecture of quantitative traits and to implement marker assisted selection”, coordenado por Anete Pereira de Souza, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Desde o mestrado, Mollinari vem estudando um sistema para mapeamento genético de poliploides, com vistas, inicialmente, à cana-de-açúcar. Não havia, até agora, um sistema desenvolvido especificamente para poliploides complexos. Cientistas e melhoristas usavam sistemas aplicados ao mapeamento de organismos diploides, com adaptações nas análises estatísticas para trabalhar com organismos mais complexos, o que torna os resultados dos mapeamentos imprecisos.
“Quando recebemos os dados, temos dificuldade de entender o que ocorre em determinados pontos do cromossomo. Podemos ter muitas combinações, a informação é nebulosa”, disse Mollinari.
Para resolver essa dificuldade, o pesquisador propôs o uso do chamado modelo de cadeia oculta de Markov, muito usado na estatística. “Nosso cérebro consegue ler palavras inteiras, mesmo que letras estejam faltando ou existam números entre elas. O modelo de Markov faz a mesma coisa que nosso cérebro: em vez de olhar as posições específicas, olha os cromossomos como um todo e preenche essas posições, permitindo que tenhamos uma visão completa das posições dos cromossomos no genoma”, explicou Mollinari.
Depois de desenvolver os algoritmos, o pesquisador fez simulações para testar a plataforma. Uma delas foi aplicada para mapear duas variedades de batata (Atlantic e B1829-5) que já tinham seu mapeamento estabelecido com métodos desenvolvidos para seres diploides. Com essas simulações, ele pôde comparar seus resultados com os já existentes e, assim, validar seu sistema. Também fez uma simulação comparativa com um software holandês adaptado para poliploides.
Esse novo sistema pode ser usado para o mapeamento de genes de diversos poliploides, como forrageiras, kiwi, mirtilo e também a cana – espécies-alvo de pesquisadores de pelo menos sete instituições já estão usando a plataforma desenvolvida por Mollinari.
“O Bioen foi a motivação inicial do projeto, que acabou tendo uma repercussão maior do que o mapeamento genético da cana”, disse Garcia. Além dessa espécie, o novo método também está sendo aplicado em estudos de forrageiras cultivadas no Brasil.
Em nível internacional, a aplicação mais recente está sendo feita pelo próprio Mollinari em seu trabalho nos Estados Unidos. Ele participa de um projeto apoiado pela Fundação Bill e Melinda Gates que visa desenvolver ferramentas genômicas aplicadas ao melhoramento genético da batata-doce – iniciativa voltada a dar apoio a produtores desse alimento na África Subsaariana.
Para o melhoramento genético, é preciso verificar como cada cromossomo foi herdado pelos “filhos” gerados no cruzamento, o que é possível com o MAPpoly. Combinado com o mapeamento do fenótipo, os melhoristas poderão desenvolver os cultivares de seu interesse de forma mais rápida e eficiente.
“Trata-se de uma ferramenta para facilitar a vida dos melhoristas e não para substituir esses profissionais. Eles conhecem melhor as características dos cultivos e vão atuar nos trabalhos de seleção, o que é necessário para se chegar a novas variedades”, disse Mollinari.
Janaina Simões