O aquecimento global é um fato científico e duvidar dele é como querer argumentar que dois mais dois não são quatro. O mundo precisa de uma redução massiva nas emissões de carbono se não quiser gastar dezenas de trilhões de dólares com as consequências da mudança climática. Nesse contexto, não fica bem para nenhuma empresa se manifestar contra iniciativas que visem a redução das emissões de carbono de um país.
A Petrobras sabe muito bem disso. Suas sugestões ao RenovaBio são uma aula de como dificultar uma iniciativa sem dizer diretamente que é contra.
Em um documento de 14 páginas, a Petrobras apresentou à consulta pública do MME uma série de pontos que devem ser observados para a confecção do RenovaBio. A maneira prolixa com que cada ponto é colocado deixa um enorme espaço para a visão da estatal aparecer nas entrelinhas (o documento foi divulgado no site do MME na semana passada, depois que a consulta pública já estava encerrada).
Se as sugestões da Petrobras fossem levadas adiante, o programa passaria alguns anos levantando dados e discutindo a forma mais perfeita de existir.
O fato da Petrobras se posicionar publicamente dessa forma, indica que o RenovaBio agora deve ter um opositor do calibre das maiores petroleiras do mundo.
A Petrobras começa seu relatório lembrando que para cumprir as metas de emissões o “Brasil possui uma diversidade de opções nos setores florestal, elétrico, agropecuário, industrial e transportes.” O argumento é uma tentativa de mostrar ao governo que não é necessário incentivar os biocombustíveis, por que outros setores podem contribuir.
Desta forma, explica a Petrobras, “o país está desonerado da obrigação de criar espaço para os biocombustíveis”, pois já tem a maior participação de renováveis na matriz de transporte.
Uma das maiores petroleiras do mundo não quer que o Brasil encontre no etanol um caminho válido para o cumprimento da meta geral estabelecida pelo governo federal.
Coincidentemente, é da venda de combustíveis com alta emissão de CO2 que a Petrobras tem grande parte de sua receita. Deixar esse mercado como está garante no curto e médio prazo as condições de mercado que a petroleira conhece muito bem.
Porém, se ainda assim a opção do Brasil for por lançar uma iniciativa para valorizar combustíveis que contribuem mais para o meio ambiente, a Petrobras segue seu relatório tentando direcionar as discussões para que o RenovaBio fique restrito exclusivamente as metas da COP21. O argumento principal da Petrobras é que o Brasil não emita menos carbono que o necessário. Se a emissão de carbono em 2030 tem que ser 43% menor que às aferidas em 2005, o Brasil deve, pelo que aponta a Petrobras, tomar todos os cuidados para não reduzir a emissão de carbono nem 1% a mais.
Esse cuidado é apresentado no capítulo do relatório que trata dos critérios para as projeções de demanda de combustíveis. Dentro desse tópico são colocados sete pontos que devem ser considerados e alguns deles mostram como o corpo técnico da Petrobras está muito bem informado das tendências automotivas e comportamentais para a próxima década.
Todo o capitulo é norteado pelo princípio de que o mundo em 2030 será diferente deste que vivemos hoje e, por isso, a demanda por combustível líquido deve ser mensurada considerando essas mudanças.
A maior frota de veículos híbridos e elétricos, que segundo a Petrobras começarão a ser fabricados no Brasil entre 2021 e 2023; a eficiência dos motores em razão das metas de diversos países importantes do globo; a menor venda de veículos no Brasil em razão da crise atual; e a chamada revolução da mobilidade, onde entram os veículos autônomos e as mudanças comportamentais e tecnológicas associadas, farão com que a demanda por combustíveis possa ser menor que àquela projetada inicialmente.
Um modelo que reúna tudo isso ainda precisará colocar a menor taxa de crescimento da população, que, por consequência, trará uma menor população adulta capaz de possuir um veículo.
Tudo isso para que o Brasil não incorra no erro, na visão da Petrobras, de ir além do que prometeu na COP21.
O terceiro capítulo das sugestões enviadas pela Petrobras é um dos mais interessantes. Em resumo, a Petrobras diz que incentivar biocombustíveis de primeira geração não é o melhor. O programa deve definir espaços para cada biocombustível, promovendo e incentivando os mais modernos e avançados.
Pelo que se ouve, o RenovaBio vai fazer exatamente isso que a Petrobras sugeriu. Só que ao invés de diferenciar as tecnologias por avançadas, modernas ou de 2ª e 3ª geração, o programa vai mensurar o carbono emitido em todo o ciclo de vida do produto. Os combustíveis que emitirem menos carbono terão um valor mais alto que os demais. O incentivo às novas gerações de biocombustíveis, solicitado pela Petrobras, está presente no RenovaBio pelo mandato obrigatório e pelo sobrepreço que será pago em razão da menor emissão de carbono.
Talvez essa saída encontrada pelo RenovaBio não fosse a melhor para a Petrobras. Talvez para ela o ideal seria incentivar a pesquisa e desenvolvimento da segunda e terceira geração de combustíveis e quando usinas fossem construídas, ganhassem uma parte definida do mercado. Enquanto isso o país seguiria usando derivados daquele produto que é a segunda maior fonte de emissão de carbono do planeta e que, por acaso, é o principal produto do portfólio da Petrobras.
O quarto tópico trata do alinhamento do RenovaBio com a iniciativa Combustível Brasil. Combustível Brasil é um programa que visa definir como será o mercado de venda e distribuição de combustíveis em um cenário onde a Petrobras não tem a mesma importância nesses dois pontos da cadeia.
Impossível negar que os dois programas falam de combustíveis líquidos e que olham para o futuro do país. Porém, um está preocupado com as emissões de carbono e o outro com o mercado dos combustíveis que emite mais carbono. Querer que eles se alinhem é, na prática, um pedido de protelamento do RenovaBio. O Combustível Brasil tem uma agenda muito aberta com entidades discordando de ponto basilares da iniciativa. Adicionar mais a complexidade dos biocombustíveis é prejudicial aos dois programas.
O documento da Petrobras ainda coloca que é preciso “compatibilizar as questões ligadas à produção e comercialização dos coprodutos dos biocombustíveis”. E cita como exemplo o açúcar e coprodutos do biodiesel, farelo, óleo de soja e glicerina. É difícil de imaginar o programa Combustível Brasil tratando de farelo de soja e açúcar e mais difícil ainda compatibilizar com o mercado de pelo menos cinco commodities de grande expressão mundial.
O tópico ainda traz uma tabela com os tributos cobrados dos combustíveis no Brasil. A gasolina paga R$ 481,60 de PIS, COFINS e CIDE, enquanto o etanol apenas R$ 120. Já o diesel paga R$ 298 e o biodiesel apenas R$ 38,68. No caso do biodiesel a Petrobras descontou o crédito presumido de R$ 109. O objetivo aqui foi mostrar que os combustíveis renováveis já possuem uma valoração de suas externalidades, deixando assim implícito que qualquer nova valoração deve considerar essa diferença existente.
Chegando quase ao final do relatório da Petrobras notamos que em momento algum é feita a comparação dos biocombustíveis com os combustíveis fósseis (exceção para a tabela com os impostos). Sempre que é feita uma comparação do etanol ou do biodiesel é com biocombustíveis de uma nova geração ou apenas ressaltando algum ponto negativo.
Esta opção de apresentação dos fatos fica evidente no capítulo de modelos e mandatos. Ao tratar das emissões dos biocombustíveis, é levantada questão de NOX, compostos orgânicos voláteis e outros compostos que podem levar a uma produção maior de poluentes secundários. Para evitar isso, a Petrobras pede que sejam feitos estudos e até mesmo uma modelagem atmosférica para avaliar o impacto de um maior uso de biocombustíveis.
O que está implícito nessas colocações da estatal é que os biocombustíveis podem ser mais prejudiciais que seus equivalentes fósseis. Eles concordam que a emissão de carbono é menor, mas os outros compostos podem ser mais danosos para a saúde humana e para a atmosfera. Cabe ressaltar que não é uma certeza, mas uma possibilidade levantada por uma empresa que está de saída do mercado de biocombustíveis para focar apenas no petróleo e seus derivados.
A Petrobras se coloca também contra mandatos que variem por região ou por período do ano, tendo em vista a inviabilidade de adequação das operações de refino e logística.
A endividada estatal ainda lança dúvidas sobre a capacidade de investimento do setor sucroalcooleiro. Para ela “o alto endividamento e a delicada situação financeira de parte da indústria podem causar problemas que vão desde a estagnação dos investimentos greenfields até a dificuldades para manutenção da produtividade agrícola. Sendo assim, faz-se importante avaliar a real capacidade do setor para realizar os investimentos necessários de forma a garantir uma elevação da oferta de etanol.”
Por maiores que sejam os problemas financeiros das usinas, eles não afetam todo o setor. A Petrobras era sócia de empresas produtores de açúcar e álcool e sabia bem das condições delas. Uma de suas parceiras foi rentável mesmo em anos de crise e outra foi um sumidouro de dinheiro da estatal, que praticamente teve que pagar para sair da sociedade. O setor todo é assim, composto por usinas rentáveis e com capacidade de investir e outras que mal conseguem sobreviver. Um programa de longo prazo do governo daria respaldo para essas empresas captarem dinheiro com bancos e novos investidores. E esse raciocínio não é algo avançado, pelo contrário. Os técnicos da Petrobras que escreveram esse documento mostraram ser capazes de entender a fundo as benesses e mazelas dos biocombustíveis. O que leva a concluir que ao levantar esse assunto a Petrobras queria apenas colocar mais uma barreira para o fluxo do RenovaBio.
Por fim, o quinto tópico termina com quatro considerações que não tem uma ligação direta com os motivos apresentados. A Petrobras alerta para possível elevação de preços dos biocombustíveis e da gasolina C, se houver metas compulsórias; a necessidade de incluir biocombustíveis avançados com políticas públicas que permitam seu desenvolvimento; e cuidado com fraudes no sistema de créditos de carbono.
A Petrobras dedica um tópico inteiro sobre o aumento e a antecipação do mandato de biodiesel. A primeira frase desse tópico resume a opinião da empresa sobre o biodiesel: “O aumento ou antecipação do mandato de biodiesel requer a avaliação rigorosa de aspectos relacionados à qualidade do produto, meio ambiente, oferta de matéria-prima, cadeia logística, dentre outros.”
No entendimento da Petrobras os aumentos previstos para B9, em março de 2018, e para B10, em março de 2019, não devem ser antecipados como quer o setor produtivo. E o aumento para B15 que pode vir depois que o B10 for implementado, só deve acontecer depois da conclusão de alguns estudos e análises.
A posição deles é oposta à da indústria do biodiesel que pede a antecipação do B9 para julho de 2017 e do B10 para março de 2018.
Desde que o programa de biodiesel brasileiro foi lançado, em 2003, essa é a primeira vez que a Petrobras se posiciona tão claramente contra o crescimento do mercado de biodiesel.
O relatório de sugestões da Petrobras ao RenovaBio é claramente contrário ao avanço rápido dos biocombustíveis. Nada mais natural para uma empresa que vende petróleo e está saindo do mercado de biocombustíveis depois de amargar bilhões de reais de prejuízo.
Esse relatório de sugestões é muito mais do que uma série de pontos que os responsáveis pelo RenovaBio podem valorizar ou não. Ele é a parte visível de um trabalho que a Petrobras executa nas entranhas do poder em Brasília. E a Petrobras não é uma empresa comum que tenta influenciar os membros do governo nos diversos ministérios, ela tem funcionários de carreira como membros do governo.
São pessoas que gostam da Petrobras e tiveram ao longo da vida o pensamento moldado pela empresa. É esse raciocínio que encontramos nas sugestões ao RenovaBio.
Quando a Petrobras estava no auge da expansão do pré-sal e lava jato era apenas um lugar onde se lavava carros, era comum ouvir no MME que a Petrobras era uma nação dentro do Brasil, tamanho era seu poder de influência e recursos. E essa nação interna nem sempre tinha os mesmos interesses que o Brasil. Por mais que essa nação tenha encolhido, ela continua atuando na defesa de seus interesses.
O RenovaBio tem potencial para ser muito mais do que uma das maneiras do Brasil cumprir as promessas feitas na COP21. O que se desenha é um programa que pode trazer dezenas de bilhões de dólares em investimento e gerar milhares de empregos enquanto diminuímos a poluição. São pouquíssimos os países que tem condições de mitigar as emissões de carbono e melhorar os índices sociais e econômicos.
O setor de biocombustíveis no Brasil deve ficar muito atento aos próximos passos do RenovaBio. Já está na hora da proposta final ser divulgada. E uma proposta de verdade, não os conceitos etéreos que foram lançados para consulta pública.
Agora é o momento do mercado saber como o programa pretende valorar os combustíveis que emitem menos carbono, como será feita a conta de quanto carbono é emitido, como as usinas serão certificadas, como o biodiesel e o etanol vão concorrer entre si, e dezenas de outras perguntas.
Também está chegando a hora do governo reafirmar o RenovaBio. O ministro Fernando Coelho precisa mostrar que o programa chegou em sua reta final. Esse comprometimento é importante não só para vencer as forças que trabalham contra o RenovaBio, mas para mostrar que o ministério terá o ânimo necessário para transformar esse projeto em Lei.
Miguel Angelo Vedana, diretor executivo do novaCana e BiodieselBR.
Fonte: NOVACANA.COM