Mais de 100 nações exploram a cana-de-açúcar, mas o desempenho do Brasil nesse campo da agroindústria é singular. O país é o maior produtor mundial, com 646 milhões de toneladas colhidas na safra de 2017/2018, e as usinas do país têm rendimento elevado, fabricando açúcar e etanol em larga escala e recorrendo à queima de resíduos de cana para gerar eletricidade.
Um grupo de pesquisadores do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Universidade Estadual de Campinas (Nipe-Unicamp) dedicou os últimos cinco anos a estudar por que o modelo adotado no Brasil não teve o mesmo sucesso em outras nações de clima tropical e quais seriam as condições necessárias para que a América Latina e a África consigam ampliar a produção de bioenergia.
“A formação de uma rede robusta de países produtores do etanol de cana é importante para consolidar o mercado de biocombustíveis”, explica o engenheiro agrícola Luis Cortez, professor da Unicamp. “O objetivo do nosso projeto é gerar conhecimento para orientar estratégias desses países”.
Cortez é o líder do Lacaf (Bioenergy Contribution of Latin America & Caribbean and Africa to the GSB Project), projeto temático iniciado em 2013 e vinculado ao Global Sustainable Bionergy (GSB), iniciativa para discutir a viabilidade da produção de biocombustíveis em larga escala e em nível mundial. O Lacaf foi estruturado para dar resposta a três perguntas. A primeira é: por que um país latino-americano ou africano se interessaria em produzir etanol?
“A experiência do Brasil, que criou uma indústria do bioetanol e utiliza o combustível para adicionar à gasolina, responde em parte a essa pergunta”, afirma o engenheiro Luiz Horta Nogueira, pesquisador da Universidade Federal de Itajubá e do Nipe. “Mas há um pano de fundo, que são as assimetrias no desenvolvimento. América Latina e África estão ficando mais distantes de sociedades industrializadas na Ásia. A bioenergia ajudaria essas regiões a ganhar fôlego”.
A segunda pergunta do projeto foi: quanto etanol poderia ser produzido de modo sustentável? Os pesquisadores testaram cenários conservadores. Em artigo publicado em janeiro na revista Renewable Energy, o grupo constatou que países como Guatemala, Nicarágua e Cuba poderiam substituir por etanol 10% da gasolina e entre 2% e 3% do diesel que consomem apenas por meio de ganhos de produtividade em usinas e destilarias, sem precisar ampliar a área plantada de cana. Já a Bolívia, com um pequeno avanço dos canaviais sobre áreas de pasto, conseguiria substituir 20% da gasolina e do diesel e ainda exportar etanol excedente. O uso do bagaço para produzir eletricidade poderia suprir as necessidades de um terço dos 11% da população boliviana sem acesso à eletricidade.
Na África, os impactos seriam ainda mais diversos. Um paper publicado pelo grupo em 2016 na Frontiers in Energy Research mostrou que a expansão da cana em 1% das áreas de pastagens em Angola, Moçambique e Zâmbia geraria um volume de combustível capaz de substituir 70% da madeira usada em fogões a lenha que enfumaçam as cozinhas e causam danos à saúde. A queima de resíduos da cana poderia ampliar em 10% a geração de eletricidade em Moçambique, Malawi, e Zâmbia, e em 20% em Angola.
Ao responder à terceira pergunta – como, então, ampliar a produção? –, os pesquisadores constataram que não existe um caminho único, ainda que o modelo do Brasil possa servir de inspiração. Colômbia, Argentina, Guatemala e Paraguai adotaram um sistema semelhante ao brasileiro, com usinas de grande porte produzindo etanol, açúcar e energia. “Isso de certa forma é uma comprovação de que o modelo é sustentável”, diz o engenheiro Manoel Régis Leal, pesquisador do Nipe-Unicamp.
É certo que a escala de produção não é comparável: estima-se que o Brasil seja responsável por três quartos da produção de cana do continente, enquanto os demais países dividem os 25% restantes. “Mas regiões como o Vale do Cauca, na Colômbia, com campos de cana irrigada, têm produtividade elevada”, informa Leal.
Existem formas distintas de uso da terra em que a matéria-prima é produzida. No Brasil, em média, um terço da cana é plantado em propriedades da usina, outro terço em terra arrendada e o terço final é adquirido de produtores independentes. “Mas nem todas as usinas são assim e há lugares, como Índia e Tailândia, em que 100% da cana é fornecida por pequenos produtores”, explica Leal.
Assistência e insumos
Os pesquisadores visitaram vários países, mas concentraram sua análise em dois deles: Moçambique e Colômbia. “A Colômbia está bem mais avançada, inclusive com centros de pesquisa para aperfeiçoar a produção”, conta Luis Cortez. Já em Moçambique o cenário é de estagnação. Um caso excepcional é o da açucareira Xinavane, na província de Maputo. “Instalada pelos portugueses, a empresa foi paralisada durante a guerra civil [1977-1992] e mais tarde reabilitada por um grupo sul-africano. A usina implementou um sistema no qual pequenos produtores fornecem parte da cana e recebem em troca assistência e insumos”, explica Leal.
As dificuldades em Moçambique, ele observa, têm a ver com uma estrutura fundiária complexa. “A terra pertence ao governo e a cessão é intermediada por chefes tribais.” Apesar disso, indicadores econômicos tendem a melhorar quando uma usina é construída. “As populações passam a ter acesso a mais empregos e há ganhos em infraestrutura, incluindo linhas de eletricidade, hospitais e escolas”, afirma Leal.
Os estudos de caso sugerem que a viabilidade econômica do bioetanol está relacionada com a produção em larga escala. “Um modelo baseado apenas na agricultura familiar não funciona. Usinas de um certo porte garantem a produtividade adequada”, diz Luiz Horta Nogueira.
Segundo ele, vários motivos explicam a dificuldade de o bioetanol se consolidar em outros países. “Um deles é a limitação de recursos para grandes projetos. Mas também persiste um nível de desinformação alto”, afirma. “Temos usado há décadas etanol em motores de automóveis, mas em alguns países ainda se diz que o combustível provoca corrosão”.
A dúvida mais recorrente envolve a ideia de que, se a terra for usada para produzir energia, pode faltar espaço para produzir alimento. “Isso não faz sentido. Em Moçambique, fizemos as simulações avançando sobre 1% de terras de pastagens”, afirma. “Desde o pós-guerra, a disponibilidade de alimentos por pessoa aumentou muito. Há problemas localizados associados à renda, não à falta de comida.”
Para partilhar o conhecimento, o grupo realizou workshops nos Estados Unidos e na África do Sul e convidou pesquisadores e autoridades de vários países. “Apresentamos mapas e estudos de modelagens. O impacto foi bom. Os colombianos convidaram o nosso pessoal para voltar”, diz Cortez. Os resultados do projeto serão divulgados em um livro, a ser lançado pela editora britânica Taylor & Francis.