Um dos desafios relacionados às cadeias de produção no século XXI se refere à sustentabilidade das empresas associada ao comportamento de seus consumidores. A produção, o consumo e o desenvolvimento devem acontecer de maneira socialmente responsável e ambientalmente correta, de modo a agregar valor para o mercado e para a sociedade.
No contexto brasileiro, ao longo dos anos, um modelo de desenvolvimento industrial e urbanização acelerado e mal coordenado acarretou em problemas com tratamento e destinação inadequada dos resíduos gerados por centros urbanos adensados, áreas rurais em expansão e indústrias baseadas em produção de escala (IPEA, 2012).
Os problemas relacionados ao tratamento e destinação adequada dos resíduos sólidos bem como o aumento da demanda energética são desafios para o desenvolvimento sustentável. No país são produzidos em média 0,95 kg/hab./dia de lixo, estimando-se um descarte diário de quase 200 mil toneladas de resíduos, materiais que possuem valor econômico e energético possíveis de serem reciclados, dispostos em aterros ou lixões sem nenhum tipo de aproveitamento (SNIS, 2017).
Estes altos índices de geração de resíduos, associados à sua destinação inadequada e à estagnação da reciclagem, favorecem a intensificação de diversos impactos ambientais, tais como geração de líquidos percolados (lixiviado) de alta carga orgânica e emissão de gases de efeito estufa. Consequentemente, há a possibilidade de poluir o solo, o ar e a água, reduzindo a qualidade dos recursos naturais, além de promover a proliferação de doenças e condições sociais degradadas (ABRELPE, 2017).
Haja visto os impactos negativos causados pelo modelo de “extrair-transformar-descartar” característico da Economia Linear, no qual o consumo dos recursos naturais é maior do que a sua reposição, surgem políticas públicas e iniciativas que promovem a transição para o modelo da Economia Circular. De acordo com a Fundação Ellen MacArthur (2019), a transição para uma economia circular não se limita a ajustes visando reduzir os impactos negativos da economia linear. Ela representa uma mudança sistêmica que constrói resiliência em longo prazo, gera oportunidades econômicas e de negócios, e proporciona benefícios ambientais e sociais. Em suma, a economia circular busca preservar e aumentar o capital natural, otimizar a produção de recursos e fomentar a eficiência do sistema. (ELLEN MACARTHUR FOUNDATION, 2019)
A Política Nacional de Resíduos Sólidos, no Brasil, surge nesse contexto, discutida desde 1989 e instituída em 2010, representando um avanço na gestão de resíduos, pois traz conceitos que incentivam uma economia mais responsável e dispõe dos instrumentos e diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos (Planalto, 2010).
A Política Nacional de Resíduos Sólidos prevê a prevenção e a redução na geração de resíduos, tendo como proposta a prática de hábitos de consumo sustentável e um conjunto de instrumentos para propiciar o aumento da reciclagem e da reutilização dos resíduos sólidos (aquilo que tem valor econômico e pode ser reciclado ou reaproveitado) e a destinação ambientalmente adequada dos rejeitos (aquilo que não pode ser reciclado ou reutilizado).
Institui a responsabilidade compartilhada dos geradores de resíduos: dos fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, o cidadão e titulares de serviços de manejo dos resíduos sólidos urbanos na Logística Reversa dos resíduos e embalagens pós-consumo (Planalto, 2010).
A partir dessas definições, percebemos uma correlação entre a Política Nacional de Resíduos Sólidos e a proposta da Economia Circular, uma vez que esta institui um conjunto de conceitos e ferramentas – como o princípio da responsabilidade compartilhada; da Redução, Reutilização e Reciclagem e o estabelecimento de Sistemas de Logística Reversa – capazes de atuar sobre ciclos de vida de produtos e serviços, contribuindo para o desenvolvimento e consumo sustentável (KIM et al., 2018).
Outra iniciativa que desempenha um papel importante na orientação das políticas públicas em direção à sustentabilidade ambiental, social e econômica é a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (2015). Pode-se observar na figura 1, os 17 objetivos a serem atingidos até 2030 por todos os países do mundo e a sociedade civil global e suas respectivas descrições, como o de logística reversa, incentivo à redução, reciclagem e reuso de resíduos e uso eficiente dos recursos naturais. (ONU, 2015).
Conforme a figura 2, percebe-se a importância da inserção de propostas de economia circular, como o biogás, em que resíduos ricos em matéria orgânica são reaproveitados para produção de biocombustível por meio da digestão anaeróbia, atribuindo valor econômico ao resíduo e seu uso na geração de energia, seja em plantas industriais, residências ou automóveis.
Neste contexto, surgem também diversos trabalhos científicos e discussões em direção à melhor gestão de resíduos. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, realiza diferentes projetos de produção de biogás a partir de resíduos sólidos urbanos.
Cabe destacar a linha de pesquisa em Codigestão Anaeróbia de Resíduos Sólidos Orgânicos com Lodo de Estações de Tratamento de Esgoto, desenvolvida no Centro Experimental de Saneamento Ambiental – CESA UFRJ (figura 3), sob orientação do professor Isaac Volschan Júnior do Depto. de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da UFRJ.
Iniciada em 2014, com a análise de eficiência de digestores têxteis, relatada e desenvolvida no trabalho de conclusão de curso (TCC) em Engenharia Civil do aluno Pedro Brancoli, a pesquisa em produção de biogás ocorreu nos últimos anos em diferentes fases, como observado na figura 4, cada qual utilizando diferentes configurações de digestores. O objetivo é promover a otimização do biodigestor e o desenvolvimento de uma metodologia eficiente e econômica para operar e controlar a produção de biogás. Além disto, ocorre tratamento dos resíduos reduzindo sua carga poluente por meio da digestão anaeróbia de sua fração orgânica, bem como são analisadas economicamente as possibilidades de utilização do biogás produzido como fonte de energia.
Para tanto, o experimento consiste na utilização, como substrato, de uma mistura de resíduos alimentares provenientes do Restaurante Universitário da UFRJ com lodo de processo de tratamento biológico conduzido em UASB (Upflow Anaerobic Sludge Blanket), um reator anaeróbio de fluxo ascendente de alta taxa para o tratamento de efluentes. Tal combinação é relevante para que haja diluição dos compostos tóxicos no resíduo, a fim de melhorar a taxa de produção de biogás e equilibrar a proporção de nutrientes. (SOSNOWSKI et al., 2003).
As pesquisas realizadas até 2016 mostraram-se satisfatórias, porém observou-se falhas no tocante à estrutura utilizada. Os digestores têxteis (figura 4a) foram descontinuados devido a vazamentos na estrutura, oriundos provavelmente da exposição do material a elevadas temperaturas. A mesma situação ocorreu com o digestor de fibra de vidro (figura 4b), que ao ser constatada a inadequação do material devido ao vazamento de gás e dificuldade de medição da vazão e análise de produtividade, foi substituído pelo atual modelo (figura 4c).
O biodigestor que se encontra em operação foi construído em 2016, baseado na adaptação do conceito proposto pela SOLAR CITIES, uma organização internacional empenhada na divulgação e execução de projetos variados na área de desenvolvimento sustentável voltados para comunidades, como energia verde, gestão de resíduos, permacultura e agricultura urbana. No momento presente, o sistema consiste em tanques IBC (Intermediate Bulk Container) operando com duas unidades – um reator onde ocorre a digestão propriamente e um gasômetro (figura 4c), em que ambos funcionam por diferença de pressão hidrostática, dispensando o uso de equipamento elétrico.
Atualmente, o trabalho guia-se por estudos preliminares do protótipo feitos por William Romanholi, em seu TCC em Engenharia Civil, os quais possibilitaram a constatação de resultados satisfatórios que justificam as soluções empregadas. Em tal trabalho, verificou-se a eficiência da utilização dos tanques IBC devido a:
Ademais, no que diz respeito ao biogás, constatou-se um rendimento médio de 217 L.CH4/kgSVT, valor obtido por meio da razão entre o volume de metano produzido e a quantidade de matéria orgânica introduzida no processo. Tal rendimento encontra-se próximo ao limite inferior encontrado na literatura (ALVES, 2016 apud ROMANHOLI, 2017), mostrando, portanto, a eficiência da metodologia em gerar resultados satisfatórios. Outro fator também importante para a verificação da competência do protótipo foi a taxa de remoção de DQO (Demanda Química de Oxigênio), a qual atingiu o valor de 89% a partir de uma carga orgânica aplicada média de 0,187 kg SSV/m³.dia associada a um tempo médio de permanência do resíduo no interior do tanque de 67 dias.
Portanto, com o intuito de dar continuidade aos convincentes resultados obtidos, a metodologia atual busca alternativas que consigam aprimorar os resultados e sua aplicabilidade em residências, tornando viável a sua utilização localmente sem necessidade de centralizar a produção em plantas de biogás.
Projetos como o desenvolvido no CESA e em outros centros de pesquisa buscam uma possível forma de associar o reaproveitamento de resíduos à geração de energia. Por meio da segregação da fração orgânica, evita-se o desperdício de alimento e resíduos agroindustriais, que são encaminhados para centros geradores de biogás em vez de aterros sanitários para disposição final. Assim, os resíduos são reinseridos nas cadeias de produção, mas desta vez como uma alternativa para a geração de energia, que pode ser utilizada tanto para fins domésticos, como aquecimento, quanto para aplicações ainda mais abrangentes, tal qual em veículos e até plantas industriais.
Cabe notar ainda que uma etapa de purificação do produto antes do uso final é desejável para retirar compostos corrosivos que afetam a integridade das unidades e dos sistemas de distribuição que entram em contato direto com o biogás além de diminuir sua performance energética. O gás após esta etapa constitui-se basicamente de metano com alta pureza, passando a ser designado como biometano.
Como comprovado pelas pesquisas das diferentes fases do projeto, a organização de biodigestor proposto atualmente também é uma excelente alternativa para a redução da matéria orgânica biodegradável, podendo ser utilizada até mesmo por empresas com o intuito de diminuir a carga de resíduos poluentes gerados, o que implica em redução de custos pela menor quantidade de material a ser gerenciado e menor demanda pelo uso do solo já que se economiza área em aterros sanitários. A biodigestão é, inclusive, uma fonte de receitas para organizações e companhias a partir da obtenção de créditos de carbono, funcionando como promotora da redução de emissões de Gases do Efeito Estufa, que podem ser comercializados no mercado internacional. (EMBRAPA, 2005).
Sendo assim, projetos de biodigestores como o que se encontra em operação nas dependências do CESA dialogam também com as diretrizes preconizadas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, apresentando diversos desdobramentos dentro dos campos de estudo do meio ambiente, saneamento e saúde coletiva. Somadas a isso, alinham-se às discussões sobre planejamento energético no contexto da transição para uma matriz de produção mais limpa e eficiente, que permita reinserir dentro das linhas produtivas materiais residuais atualmente subaproveitados dentro dos modelos estabelecidos.
Ocorrendo esta mudança de mindset na relação produção-consumo, passa-se da visão da Economia Linear, de exaustão de recursos, para a da Economia Circular, de responsabilidade compartilhada na preservação e transformação de recursos entre os diversos agentes envolvidos – companhias, produtores, consumidores e entes regulatórios. Assim, efetivamente se estaria caminhando em direção ao desenvolvimento de forma harmoniosa e eficientemente sustentável pela redução das pressões sobre o ambiente e, em última análise, sobre a própria qualidade de vida da população.
Referências
ABRELPE, 2017. Resíduos Especiais Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil. Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública.
BIOMETHER, 2017. Large scale plant for biomethane production from food waste in Bologna.Disponível em: <http://www.biomether.eu/2017/10/large-scale-plant-for-biomethane.html>. Acessado em: Maio, 2019.
BRANCOLI, P. L. Avaliação experimental da co-digestão anaeróbia de resíduos orgânicos e lodo de esgoto em digestores têxteis. Projeto de Graduação (Engenharia Civil) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. 2014.
BRASIL. Plano Nacional de Resíduos Sólidos: Diagnóstico dos resíduos urbanos agrosilvopastoris e a questão dos catadores. IPEA, 2012.
DRHIMA, 2004. Centro Experimental de Saneamento Ambiental. Disponível em: <http://www.drhima.poli.ufrj.br/index.php/br/laboratorios/cesa>. Acessado: Maio, 2019.
ELLEN MACARTHUR FOUNDATION. Economia Circular. Disponível em: <https://www.ellenmacarthurfoundation.org/pt/economia-circular-1/conceito>.Acessado em : Março, 2019.
EMBRAPA. Digestor é indicado para geração de crédito de carbono. Disponível: <https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/17982868/biodigestor-e-indicado-para-geracao-de-credito-de-carbono>. Acessado em: Março, 2019.
IWASAKA, FERNANDA YUMI. Políticas públicas e economia circular: levantamento internacional e avaliação da Política Nacional de Resíduos Sólidos. 2018. Dissertação (Mestrado em Processos e Gestão de Operações) – Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2018. doi:10.11606/D.18.2018.tde-08102018-110158. Acesso em: 2019-04-01.
KIM, V. J. H.; CONTE, G. G.; OMETTO, A. R.; SCHALCH, V., 2018. Semelhanças entre os conceitos de Economia Circular e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
MMA. Gestão de Resíduos. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/a3p/eixos-tematicos/gest%C3%A3o-adequada-dos-res%C3%ADduos.html> Acessado em: Junho, 2019.
ONU. Objetivo 12 Assegurar padrões de produção e consumo sustentável. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/ods12/>. Acessado em: Março, 2019.
PLANALTO, 2010. Política Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm> Acessado: Maio, 2019.
PNRS, 2017. Política Nacional de Resíduos Sólidos. 3. ed., reimpr. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017. 80 p. – (Série legislação ; n. 229 PDF).
ROMANHOLI, W. M. M. Desenvolvimento de protótipo de digestor a partir de tanque IBC para codigestão de resíduos orgânicos e lodo de esgotos. Escola politécnica UFRJ, Rio de Janeiro, 2017.
SOSNOWSKI P., WIECZOREK A. AND LEDAKOWICZ S. Anaerobic co-digestion of sewage sludge and organic fraction of municipal solid wastes. Advances in Environmental Research.v.7, n. 3, p. 609-616.Maio 2003.
SNIS, 2017. Diagnóstico Anual de Resíduos Sólidos. Disponível em: <http://www.snis.gov.br/diagnostico-residuos-solidos>. Acessado: Maio, 2019.