É um consenso que o estilo de vida promovido pela Economia Linear apresenta efeitos colaterais nocivos para a sociedade, como a poluição, o desmatamento, o empobrecimento dos solos férteis, o esgotamento dos recursos naturais finitos, a redução da biodiversidade e as alterações globais no clima (INSPER, 2018). Neste sentido, a gestão da sustentabilidade tem ganhando espaço na agenda estratégica de empresas de diferentes segmentos econômicos. O pensamento de longo prazo é fundamental para que elas ultrapassem momentos de crise, contribuindo para a saúde econômica e o desenvolvimento do país (CNI, 2018).
Apesar do cenário iminente de crises econômica e sanitária associado à pandemia de COVID-19, o Brasil apresenta características peculiares que podem ser úteis para reverter esta situação: é um país com um mercado consumidor estimado em mais de 205 milhões de pessoas, possui um ecossistema industrial integrado e forte, desde o minério de ferro até os produtos acabados, e tem uma cultura de criatividade e de liderança empresarial, essencial para transformar crises em oportunidades (INSPER, 2018).
No cenário pré-COVID-19, as mudanças climáticas constituíam um dos maiores desafios a serem enfrentados neste século. Inúmeros eram os alertas sobre os problemas ambientais decorrentes do aquecimento global e, principalmente, acerca de seus efeitos para o futuro da espécie humana, suas condições de vida e seu sistema de produção (JABBOUR e SANTOS, 2009). Já havia um movimento para redefinição do sistema, com um consenso visível sobre utilização de um modelo econômico mais resiliente, circular e de baixo carbono, como pode-se observar, por exemplo, nos artigos anteriores deste blog: O Setor de Borracha na Economia Circular, Potencial do Biogás no Gerenciamento de Resíduos e Sua Inserção na Economia Circular e Iniciativas de Economia Circular na Indústria do Aço. Várias empresas investiram nesse caminho, enquanto instituições e órgãos governamentais apresentaram propostas legislativas para permitir a transição (BW, 2020), à exemplo do artigo Políticas públicas voltadas para Economia Circular: Um olhar sobre as experiências na Europa e na China.
A pandemia expôs a vulnerabilidade dos nossos sistemas e demonstrou que chegaremos a um ponto de inflexão relacionado às transformações climáticas do planeta. Recentemente, o satélite Sentinel-5P – do programa Copernicus da Agência Espacial Europeia – mostrou de sua órbita alterações significativas em diferentes locais do planeta: clareamento dos canais de Veneza; desaparecimento do smog em Los Angeles; observação dos picos do Himalaia em regiões da Índia após uma geração; e redução das concentrações de dióxido de nitrogênio (NO2) em torno de 50%, principalmente em cidades que adotaram medidas rígidas de confinamento (Milão, Roma, Paris, Wuhan e Madrid). Há evidências de que as alterações na concentração de NO2 estejam associadas, em parte, à desaceleração econômica causada pela pandemia (THE EUROPEAN SPACE AGENCY, 2020).
Em meio às incertezas, é possível encontrar soluções na Economia Circular. Os estágios iniciais da crise do coronavírus revelaram a fragilidade de muitas cadeias de suprimentos globais, como por exemplo, a de equipamentos médicos. Nesse caso, os princípios circulares forneceriam soluções confiáveis, uma vez que políticas de projeto e produto, como reparabilidade, reutilização e potencial para remanufatura, oferecem disponibilidade de estoque e competitividade. A startup paulista Nanox desenvolveu, em parceria com a indústria de plásticos Elka, uma máscara reutilizável pelos profissionais de saúde com maior nível de proteção contra a contaminação pelo novo coronavírus, contendo micropartículas à base de sílica e prata incorporadas à sua superfície, conferindo propriedades antimicrobianas e antifúngicas (AGÊNCIA FAPESP, 2020). Segundo relatório da Mordor Intelligence, o mercado global de dispositivos médicos recondicionados deve crescer mais de 10% ao ano entre 2020 e 2025. Isso representa uma menor dependência de novas matérias-primas, redução de custos e diminuição da emissão de gases de efeito estufa (BW, 2020).
É importante ressaltar que o distanciamento social é uma oportunidade de reflexão sobre as necessidades individuais de consumo. Pesquisas realizadas por Carvalho et al. (2015) e Jaca et al. (2018) mostraram que, na América Latina, o consumo verde surge em momentos de dificuldade econômica, e gera interesse pela aquisição de produtos de segunda mão, orgânicos ou eco rotulados. Uma pesquisa da CNI e levantada pelo Instituto FSB Pesquisa entre os dias 02 e 04 de maio de 2020 com 2.005 pessoas do país apontou que 77% dos brasileiros reduziram o consumo de pelo menos um dos 15 produtos testados durante o período de isolamento social, tendo 40% dos entrevistados reduzido o consumo de calçados, 37% de roupa e 32% de cosméticos (CNI, 2020). Essa mesma pesquisa mostrou que três em cada quatro consumidores irão manter redução no consumo, indicando que tal cenário pode se repetir no pós-COVID-19.
A pandemia também ressaltou iniciativas que vão ao encontro dos princípios da Economia Colaborativa e de Negócios de Impacto Social. Logo que se iniciou a quarentena no Brasil, pode-se observar parcerias como a da empresa Philip Morris Brasil, filial da norte-americana Philip Morris Internacional, com a prefeitura de Santa Cruz do Sul (RS) que permitiu o aporte financeiro de R$ 500 mil, além de doação de 30 mil máscaras cirúrgicas para o Estado e 1200 litros de álcool sanitizante, entregues à Secretaria de Saúde da cidade (CEBDS, 2020). Outro exemplo é a criação de plataformas online de Mercado Solidário pela colaboração entre professores e alunos da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). As plataformas possuem lojas virtuais ou catálogo de ofertas no próprio bairro, para ajudar pequenos negócios durante a pandemia (UFCG NOTÍCIAS, 2020).
O período de isolamento social também tem modificado a forma de utilização de residências: além da rotina convencional, são também utilizadas como home office espaço para prática de exercícios físicos, oficina de trabalho e ambiente de lazer (CALDAS, 2020). Estratégias circulares e sustentáveis têm sido aplicadas no setor de arquitetura e construção com o objetivo de produzir projetos de edificações mais eficientes e funcionais. Sob esta ótica, um dos itens mais utilizados para reduzir o consumo de materiais, recursos naturais e custos nos projetos é a diminuição do tamanho dos ambientes ocupados e da área construída. Trata-se de uma alternativa ao maior adensamento do espaço urbano devido aos elevados custos de moradia e aquisição de prédios/lojas comerciais, dentre outros fatores. É de se esperar que as edificações convencionais não consigam atender as necessidades desta nova sociedade (CALDAS, 2020).
Nesse sentido, o modelo de compartilhamento de espaços ou sharing spaces, uma estratégia da Economia Circular já em prática anteriormente à pandemia, tende a continuar aceita e vista como oportuna pela sociedade (atual e futura). Acredita-se que o compartilhamento de espaços não entrará em colapso, mas haverá uma adaptação do modelo por meio da gestão desses espaços por empresas especializadas, também chamadas de facilities managers, que já estão criando procedimentos de segurança mais rígidos e inteligentes (CALDAS, 2020). Modelos de negócio como este que transformam a posse de um produto em uso e, consequentemente, o consumidor em usuário, possuem fortes indícios de crescimento no pós-COVID-19. Segundo Velenturf e Purnell (2020) novas maneiras de consumir devem ser incentivadas e baseadas em reutilização, leasing, reparo e remanufatura, gerando mais empregos e fomentando atividade econômica local.
Implementar conceitos de circularidade no Brasil no período pós-pandemia será ainda mais desafiador, principalmente, no tocante ao tratamento de resíduos devido à pequena conscientização da sociedade e da gestão pública na questão do lixo. No modelo circular, a gestão precisaria ser menos centralizada e deveria possibilitar a criação de um sistema mais independente e autossuficiente (GRANDES CONSTRUÇÕES, 2020). Para isso, tecnologias de rastreabilidade que garantem o encaminhamento do material para empresas e cooperativas de reciclagem e compostagem devem ser incentivadas, eliminando o risco desses resíduos irem para os lixões. Um pagamento cujo valor seria calculado conforme a quantidade de resíduos produzidos/descartados poderia ser estabelecido, gerando um mercado competitivo e sustentável. Essas modificações do modelo tradicional de coleta de lixo beneficiariam toda sociedade, pois os municípios brasileiros poderiam destinar os impostos deste serviço para outros fins, como saúde, saneamento e educação (GRANDES CONSTRUÇÕES, 2020).
Outro fator de suma importância para o contexto pós-COVID-19 trata do incentivo às energias renováveis, cuja discussão ganhou força nos últimos meses. A rapidez com que foram observadas as respostas do meio ambiente às reduções das atividades industriais e de circulação de automóveis, principalmente, reflete o tamanho do impacto da ação humana nas mudanças climáticas. Diante desse contexto, dados relatados pela ONU (2020) apontam que a queda nos custos da energia limpa pode impulsionar ação climática na recuperação pós-pandemia. Quase 78% dos novos Giga Watts gerados em 2019, por exemplo, corresponderam à energia eólica, solar, de biomassa, resíduos, geotérmica e pequenas hidrelétricas e são esperados investimentos cada vez maiores, onde um recorde de 21 países e territórios somam mais de US$ 2 bilhões em energias renováveis.
Assim, os exemplos apresentados constituem algumas estratégias circulares que já vinham sendo construídas antes da pandemia, em que muitas das quais colaborou durante este período de adaptação e mostram-se promissoras numa recuperação pós-pandemia e sem desvios dos compromissos de uma economia de baixo carbono. Se faz necessário, portanto, intensificar as discussões sobre o planejamento global para mitigação dos impactos econômicos, sociais e ambientais que outrora eram postos num futuro distante, mas que batem à porta e urgem em ações efetivas, que tornem a sociedade mais resiliente frentes à períodos de crise, tendo a Economia Circular como modelo potencial para este fim.
Quer saber mais sobre este assunto? Assista ao nosso 1º Webinar, “Desafios da Economia Circular na Era COVID-19”, realizado no dia 29 de junho de 2020, disponível no Canal do YouTube do NEITEC e à nossa Palestra, “Tendências da Economia Circular na Era COVID-19”, realizada no dia 16 de julho de 2020 no Festival do Conhecimento da UFRJ, disponível no Canal do Youtube da Extensão UFRJ.
Referências:
AGÊNCIA FAPESP. Startup desenvolve máscara reutilizável com maior proteção contra novo coronavírus. 2020. Disponível em: <http://agencia.fapesp.br/startup-desenvolve-mascara-reutilizavel-com-maior-protecao-contra-novo-coronavirus/32982/>. Acesso em: 5 maio 2020.
BW. Economia Circular: mais relevante do que nunca. Disponível em: <https://www.bwexpo.com.br/economia-circular-mais-relevante-do-que-nunca/>. Acesso em: 01 jun. 2020.
CALDAS, L. R. Arquitetura e Economia Circular na era dos espaços compartilhados. ArchDaily. 2020. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/940408/arquitetura-e-economia-circular-na-era-dos-espacos-compartilhados>. Acesso em: 30 maio. 2020.
CARVALHO, B. L.; SALGUEIRO, M. F.; RITA, P. Consumer sustainability consciousness: a five dimensional construct. Ecological Indicators, v. 58, p. 402–410, 2015.
CEBDS. Empresas buscam auxiliar a sociedade em meio à pandemia do coronavírus. 2020. Disponível em: <https://cebds.org/empresas-buscam-auxiliar-a-sociedade-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/#.XtTuBjpKjIW>. Acesso em: 25 maio 2020.
CNI: Confederação Nacional da Indústria. Economia Circular: oportunidades e desafios para a indústria brasileira. Brasília: CNI, 2018. 64 p. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4914982/mod_resource/content/1/Economia%20Circular_CNI_2018.pdf>. Acesso em: 23 maio. 2020.
CNI. Três em cada quatro consumidores vão manter redução no consumo no pós-pandemia. 2020. Disponível em: <https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/tres-em-cada-quatro-consumidores-vao-manter-reducao-no-consumo-no-pos-pandemia/>. Acesso em: 27 maio 2020.
ESA: The European Space Agency. Seen from space: COVID-19 and the environment. Disponível em: <https://www.esa.int/Applications/Observing_the_Earth/Copernicus/Sentinel-5P>. Acesso em: 20 maio. 2020.
GRANDES CONSTRUÇÕES. Brasil precisa implantar conceitos de circularidade. 2020. Disponível em: <http://www.grandesconstrucoes.com.br/Noticias/Exibir/brasil-precisa-implantar-conceitos-de-circularidade>. Acesso em: 29 maio. 2020.
INSPER. Economia circular é uma alternativa para a reversão da crise econômica. 2018. Disponível em: <https://www.insper.edu.br/conhecimento/conjuntura-economica/economia-circular-alternativa-reversao-crise-economica/>. Acesso em: 22 maio. 2020.
JABBOUR, C. J. C.; SANTOS, F. C. A. Sob os ventos da mudança climática: desafios, oportunidades e o papel da função produção no contexto do aquecimento global. Gestão e Produção, v. 16, n. 01, janeiro – março de 2009.
JACA, C.; PRIETO-SANDOVAL, V.; PSOMAS, E.; ORMAZABAL, M. What should consumer organizations do to drive environmental sustainability? Journal of Cleaner Production, v. 181, p. 201–208, 2018.
ONU. Queda nos custos da energia limpa pode impulsionar ação climática na recuperação pós-COVID-19. 2020. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/queda-nos-custos-da-energia-limpa-pode-impulsionar-acao-climatica-na-recuperacao-pos-covid-19/>. Acesso em: 22 jun. 2020.
UFCG NOTÍCIAS. Professor da UFCG cria lojas virtuais para pequenos negócios enfrentarem pandemia. 2020. Disponível em: <https://portal.ufcg.edu.br/ultimas-noticias/1890-professor-da-ufcg-cria-lojas-virtuais-para-pequenos-negocios-enfrentarem-pandemia.html?fbclid=IwAR0YhNKF8Tk6SFcSx8wgOZNnIW996lOTXCulIa-UhrY_Qp5GWdQUd-Jxap0>. Acesso em: 1 jun. 2020.
VELENTURF, Anne; PURNELL, Phil. What a sustainable circular economy would look like. 2020. Disponível em: <https://theconversation.com/what-a-sustainable-circular-economy-would-look-like-133808>. Acesso em: 13 maio 2020.