Apesar dos avanços e inovações tecnológicas como, por exemplo, o desenvolvimento de Cidades Inteligentes, Inteligência Artificial e Big Data, a nossa sociedade ainda se depara com um cenário alarmante em relação a questão sócio-econômica-ambiental caracterizado, majoritariamente, pelo pouco aproveitamento de resíduos e uma economia pouca colaborativa. Entretanto, algumas iniciativas moldadas pelo conceito de processos sustentáveis, produção limpa, economia circular e chemical leasing já buscam mudar esse cenário e vão de encontro aos princípios da química verde no tocante ao uso eficiente de recursos e a eliminação de resíduos.
A química verde, cujos conceitos vem ganhando espaço desse 1998, com o livro de Green Chemistry, de P.T. Anastas e J.C. Warner, tem sua aplicação na molécula, desde sua síntese, seu uso, destruição, e como ela se decompõe após a sua vida útil. A Figura 1 apresenta os 12 Princípios da Química Verde, que apresentam diretrizes em prol do desenvolvimento de produtos e processos químicos mais otimizados, mais seguros e menos poluentes ao longo de todo o ciclo de vida de produção (COUTINHO et al., 2019).
O conceito de produção e de consumo sustentáveis resulta de um processo evolutivo iniciado nos anos 1970 e provém de iniciativas para a promoção da chamada produção mais limpa (P+L), ou seja, a produção que utiliza menos recursos naturais e gera menos resíduos.
Em 1987, o Relatório de Brundtland, publicado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD) da ONU, formalizou o conceito de sustentabilidade, tendo como principal meta satisfazer as necessidades da geração atual sem comprometer as gerações futuras. Segundo a plataforma mundial de dados estatísticos sobre resíduos sólidos urbanos, Waste Atlas, dos 1,9 bilhões de toneladas por ano de resíduos gerados, 30% não são coletados e do restante levado aos aterros sanitários, apenas 19% é reciclado e 11% transformados em energia. No Brasil, foi constatado por um estudo intitulado “Dossiê Lixo”, que são produzidos 387 quilos de lixo por pessoa em um total de mais de 79 milhões de toneladas de resíduos sólidos descartados anualmente.
Já a economia circular é um conceito estratégico, que visa integrar o tripé de desenvolvimento econômico, proteção ambiental e responsabilidade social e tem como princípios básicos: i) manter o capital natural ao equilibrar a gestão dos recursos renováveis e dos estoques finitos; ii) otimizar a circulação dos produtos por maior tempo possível tanto no nível biológico quanto no técnico mantendo desempenho e valor; e iii) tornar o sistema efetivo ao minimizar ou eliminar externalidades negativas (1). Uma análise realizada pela consultora empresarial Mckinsey & Company estima que o crescimento da economia circular poderia gerar uma economia de materiais da ordem de US$ 1 trilhão até 2025, com capacidade de geração de mais de 100 mil empregos nos próximos cinco anos. A estas projeções, alia-se uma ampla gama de serviços com grande potencial de desenvolvimento, dentre os quais destacam-se os modelos de negócios que não se enquadram na tradicional produção de bens para o provimento de serviços.
Dentre os atores que estão envolvidos com economia circular, pode-se destacar a Fundação Ellen MacArthur, que apresenta 4 grandes “building blocks”: 1) modelo de design, 2) novos modelos de negócios, 3) ciclos reversos e 4) Fatores Viabilizadores e Condições Sistêmicas Favoráveis (FVCSF). Nos “Novos modelos de negócios”, a economia circular busca transformar o produto como serviço e o consumidor como usuário por meio da economia de compartilhamento e da inovação aberta.
Especificamente no âmbito da indústria química, pode-se citar um novo modelo de comercialização de produtos químicos, denominado de “chemical leasing”, em as funções desempenhadas pelas unidades químicas e funcionais passam ser a unidade de venda, substituindo o foco de volume de vendas para o seu valor agregado. Originado do conceito de Clean Production, iniciado pelo Ministério Federal Austríaco para Agricultura, Silvicultura, Meio Ambiente e Gestão da Água em conjunto com a United Nations Industrial Development Organization (UNIDO) em 2004, este modelo tem como principais diretrizes promover a racionalização do uso de produtos químicos, o aumento da segurança química e a redução do descarte.
Alguns setores como, por exemplo, de alimentos, construção civil e serviços, dentre outros, têm sido mais impactados. Diante desse contexto, vale citar alguns estudos de caso.
Setor Automotivo: a PERO Innovative Services GmbH (joint venture entre a PERO AG e a Safechem Umwelt Service GmbH) realizou entre 2005 e 2009 o “chemical leasing” na limpeza de peças metálicas produzidas pela companhia austríaca Automobiltechnik Blau ao utilizar um equipamento baseado na economia de produtos químicos, energia e outros custos e ao negociar o preço do serviço por número de partes de peças limpas. Esse novo modelo de negócio possibilitou a redução por ano de 72% no consumo de solvente e de pelo menos 50% em energia, o que levou a ganharem o prêmio Global Chemical Leasing Award em 2010.
Setor Hoteleiro: a companhia americana Ecolab® tem desenvolvido produtos com vista ao uso eficiente de recursos, cujo core business é o uso de tecnologias limpas e a minimização de desperdício no tratamento de água, higiene, energia e serviços. Em 2014, recebeu essa premiação em conjunto com o Windsor Atlântica Hotel, no Brasil, pela comercialização personalizada dos seus produtos químicos, que passou de Reais (R$) por galão ou Kg de produto para Reais (R$) por quarto ocupado por dia e com a introdução de novas máquinas de dosagem automática, reduzindo o consumo desses produtos em 40%, além de água e energia, e pelo treinamento dos funcionários do hotel quanto ao uso seguro desses produtos.
Setor de Bebidas: A companhia norte-americana Diversey, especializada na fabricação de produtos de limpeza, e a Crown Beverages, fabricante de bebidas da Uganda, realizaram parceria para a aplicação do modelo de “chemical leasing” no tanque de tratamento de efluentes da Crown Beverages. A substituição do uso de hidróxido de sódio na forma sólida para a forma diluída no processo de tratamento e a lubrificação das esteiras e higienização das garrafas retornáveis reduziram a grande formação de espuma que encarecia o processo. Após a aplicação do modelo, a unidade de pagamento do serviço de limpeza passou a ser por unidade de bebida produzida e engarrafada, realizando em conjunto a gestão e armazenamento apropriado dos insumos químicos.
Consequentemente, houve redução de 48% de insumos químicos na lubrificação das esteiras, de 40% de insumos químicos na higienização das garrafas, diminuição do consumo de energia e produtos químicos no tratamento de efluentes e de 150 t/a de emissões de CO2, gerando uma economia direta de cerca de US$350.000,00 ao ano.
Setor de Máquinas: A companhia Akzo Nobel, grande player holandês no fornecimento de tintas e revestimentos e a ABB, fabricante de equipamentos de alta e baixa tensão e de tecnologia elétrica do Egito, firmaram em 2008 um modelo de “chemical leasing” no serviço de pintura eletrostática desses equipamentos. O acordo envolveu auditorias sobre o uso do revestimento em pó, modificações no processo de aplicação e nos procedimentos de manutenção.
Após a aplicação do modelo, a unidade de pagamento do serviço de pintura passou a ser libras egípcias/m2 de superfície metálica revestida, ao invés de libras egípcias/Kg de revestimento em pó comprado.
A ABB passou também a fornecer informações e dados relevantes para a otimização de processos para a Akzo Nobel, que por sua vez gerencia o uso do produto, treina a equipe operacional usuária do revestimento em pó e recicla as perdas de pó que ocorriam no processo.
Desse modo, houveram reduções relevantes no consumo de energia, 20% no consumo de revestimento em pó e 50% na frequência de manutenção, o que gerou uma economia direta de US$ 68.000 por ano, aproximadamente.
Cabe aqui observar a forte convergência dos 12 Princípios da Química Verde, mencionados acima com o modelo de Chemical Leasing. A Tabela 1 apresenta a correlação dos estudos de caso mencionados com esses princípios.
Pode-se perceber que as iniciativas aplicadas nos estudos de caso de Chemical Leasing estudados convergem principalmente em relação ao 1º, 3º e 6º princípios que tratam da prevenção de formação de resíduos tóxicos, de sínteses seguras à saúde humana e ao meio ambiente e da eficiência energética, respectivamente. Vale ressaltar que os princípios de desenvolvimento de produtos seguros (4º), o uso de solventes seguros (5º) e o monitoramento do processo para prevenção de acidentes (11º), embora presente em menor quantidade, apresentaram-se de importância equivalente aos anteriores para o sucesso dos respectivos casos. Tais resultados podem ser um indicativo das diretrizes preliminares a serem tomadas futuramente em um modelo de Chemical Leasing em outros setores.
Desse modo, torna-se notório que a economia circular trata de um novo modelo de sustentabilidade em que serão necessárias quebras de paradigmas nos processos de produção, padrões de consumo e novas políticas públicas para que a transição de fato ocorra. Apesar do cenário econômico ainda instável, a indústria química deve enfrentar tal fato como oportunidade para novos negócios e utilizar o seu papel como impulsionadora, por meio de seus processos e produtos, bem como provedora de inovações para favorecer seu desenvolvimento. A busca constante pela sinergia entre o modelo linear e circular, sempre que possível, poderá minimizar externalidades negativas a nível econômico, social e ambiental. A importância do chemical leasing, ocorre principalmente pela distinção da relação tradicional fornecedor-usuário, a base de pagamento para a operação comercial será o serviço realizado pela substância química. O cliente (consumidor do produto) determina as especificações (padrão de qualidade e função esperada) e o fornecedor desenvolve soluções por meio de produtos, tecnologias de aplicação e/ou treinamentos, e estabelece parcerias com fornecedores de equipamentos, recicladores, entre outros stakeholders da cadeia produtiva.
Finalmente, cabe ressaltar o papel da educação, da conscientização e das políticas, nacionais e internacionais como a SAICM – Strategic Approach to International Chemicals Management e o REACH – Registration, Evaluation, and Authorization of Chemicals, das empresas, instituições acadêmicas e o público em geral, de modo a fortalecer habilidades e tomadas de decisão em relação a Economia Circular e o modelo de negócio, Chemical Leasing.
Profª Suzana Borschiver, DSc.
Aline Tavares, Doutoranda do Programa EPQB, EQ/UFRJ
Escola de Química – UFRJ – Departamento de Processos Orgânicos
Referências
COUTINHO, P. BASTOS, J. B. V.; ALIJÓ, P. H. R.; GOULART, A. K. Intensificação de processos e química verde: importância para as indústrias farmacêutica, cosméticos, alimentícia e biorrefinarias. Revista Fitos, v. 13, n. 1, p. 74-93, 2019.
JAKL, T.; SCHWAGER, P., 2008. Chemical Leasing Goes Global. Selling Services Instead of Barrels: A Win-Win Business Model for Environment and Industry. Ed. Springer, 245 p. Disponível em: <https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-211-73752-1>
UNIDO. Disponível em: <https://chemicalleasing-toolkit.org/sites/default/files/chl_casestudy_BRAZIL.pdf>. Acesso em: março. 2020.
UNIDO. Disponível em: <https://chemicalleasing.org/concept/case-studies/lubrication-ugandan-beverage-industry>. Acesso em: março. 2020.
UNIDO. Disponível em: <https://chemicalleasing.org/concept/case-studies/surface-protection-electric-appliances>. Acesso em: março. 2020.